Fagulha
O cenário atual: sem escrever por muito tempo, com a sensação de que tudo que possa ser escrito já foi dito antes. É possível dizer algo inédito? Mais ainda, é possível SER inédito? O texto que segue não é fruto de nenhuma pretensão criativa, mas resultado da reflexão sobre a necessidade de estar só (vontade de morar só nos meus últimos meses) para ser válido. Digo, está ao alcance de alguém ser único sem ter direito a solidão? É claro que a vontade de ser único parte da vontade de ser útil (pra que serve o que eu escrevo/vivo se já foi escrito/vivido antes?), temos então um paradoxo. Escrever não soluciona nenhuma dúvida, as torna mais contundentes; talvez o valor das coisas não esteja em serem únicas, mas aproximarem quem com elas tem contato da dúvida até o ponto em que é impossível ignorá-la. Se toda a consciência parece ser intermediada pela linguagem, é possível que nunca se viva algo único visto que a linguagem precisa valer-se de signos comuns a uma comunidade pra ser verdadeiramente expressiva!?
Antes o pensamento era uma
fagulha de harmonia, beleza sonora e contundência. Começo agora, contudo, num
trôpego: a negação sistemática do direito à solidão... seria assim se o mundo
fosse quadrado e perto do fim virasse parábola, seria assim uma estrada que
seguisse sem curvas por milhares de quilômetros e no fim arqueasse e se
esvaísse.
Vamos
começar novamente. Eu quero dizer que eu não gosto de estradas. As estradas
incomodam as vacas durante a noite, as estradas são a passagem por cima do que
já foi determinado. Não gosto de estradas porque não quero que exista destino e
porque seria roubada de mim a beleza do pecado. Eu queria andar por matas
virgens, mas não sei lidar com o fato seguinte: minha presença estupraria as
matas. Veja, antes era o resplendor do monte, e agora me embrenho nas mais
ordinárias vontades de ser único. Aliás, até o resplendor do monte foi vontade
de ser único, mas não é possível.
Podemos
começar mais uma vez? Sabe, como poderia alguém passear por uma mata virgem
estando em uma estrada? Eis o quão terrível é nascer, nascer é condenar-se a
ser posto em palavras. Aliás, nascer não tem nada a ver com uma estrada, nascer
é ser posto em trilhos. Não importa a largura das bitolas, toda a direção que
se tomar leva a um caminho que já foi feito anteriormente, na época em que os
homens suavam no ato feérico de forjar a linguagem e por mais vapor que saia de
mim, sou mais locomotiva que homem, sou ardor mecânico e controlado.
Comecemos novamente. É possível ficar à deriva
com velas içadas e vento abundante? Que reflexão teria qualidade se fosse mais
focada no destino do que no percurso?
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